Processos osmorregulatórios no caranguejo Dilocarcinus pagei (Decapoda, Trichodactylidae), um antigo invasor da água doce: estudo das atividades (Na,K)-ATPase e V-ATPase branquiais / Osmoregulatory processes in the crab Dilocarcinus pagei (Decapoda, Trichodactylidae), an old invader of freshwater: characterization of the gill (Na,K)-ATPase and V-ATPase activities

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DATA DE PUBLICAÇÃO

2009

RESUMO

Os crustáceos são originariamente marinhos; ao longo da evolução, diversas espécies invadiram ambientes de salinidades menores, chegando à água doce. A capacidade dos crustáceos colonizarem com sucesso o ambiente dulcícola depende do desenvolvimento de mecanismos eficientes de hiperosmorregulação. A osmolalidade e a composição iônica da hemolinfa de um crustáceo, em meios diluídos, refletem o equilíbrio dinâmico entre a perda de íons por difusão e pela urina e sua reabsorção do meio externo, através das brânquias. A (Na,K)-ATPase branquial desempenha um papel chave no processo de captura de Na+ a partir de ambientes diluídos e suas características cinéticas vem sendo investigadas recentemente, embora as enzimas de caranguejos dulcícolas sejam pouco conhecidas. Segundo o modelo atual, a afinidade por Na+ é o parâmetro cinético mais variável entre as enzimas de diferentes espécies, refletindo a salinidade do habitat do animal, de modo que enzimas de espécies bem adaptadas à água doce apresentam afinidades maiores por Na+. Entretanto, vários resultados conflitantes têm sido relatados nos últimos anos. Recentemente, foi proposto que uma V-ATPase também desempenha papel essencial na captação de Na+ através das brânquias dos crustáceos dulcícolas. Esta enzima ainda é praticamente desconhecida: suas características cinéticas não foram estudadas e a relação entre a magnitude da sua atividade e a salinidade do meio externo não está estabelecida. Este projeto teve por objetivo a caracterização das enzimas (Na,K)-ATPase e V-ATPase das brânquias posteriores do caranguejo hololimnético Dilocarcinus pagei, considerado um antigo invasor da água doce. A (Na,K)-ATPase foi caracterizada em animais mantidos em água doce, a fim de comparar suas propriedades cinéticas com aquelas das enzimas de outras espécies de caranguejos, habitantes de meios mais salinos, visando melhorar o entendimento das adaptações bioquímicas associadas à invasão da água doce. A V-ATPase foi caracterizada em animais mantidos em água doce ou expostos por diferentes intervalos de tempo à salinidade de 21‰ ou ainda aclimatados por 10 dias a diferentes salinidades (5-21‰), visando estabelecer uma relação entre a magnitude da atividade e a salinidade do meio, além de investigar os mecanismos de regulação da atividade da enzima. A análise da fração microsomal branquial de D. pagei mantido em água doce em gradiente contínuo de sacarose mostrou dois picos protéicos (25-35% e 35-45% de sacarose), ambos com atividades K+-fosfatase, (Na,K)-ATPase e V-ATPase. Estes resultados indicam a presença de frações de membrana com densidades distintas, apresentando, em ambos os casos, as principais bombas de íons envolvidas na captação de Na+. Estas membranas podem ser originárias de locais distintos do epitélio branquial posterior assimétrico deste caranguejo. A análise por Western blotting revelou duas bandas imunoespecíficas (Mr 116 kDa e 105 kDa) correspondentes à subunidade α da (Na,K)-ATPase, sugerindo a presença de duas isoformas nas brânquias posteriores do animal. A estimulação da atividade K+-fosfatase da (Na,K)-ATPase pelo PNFF envolveu interações sítio-sítio (nH= 1,4), com V= 43,4 ± 2,2 U mg-1 e K0,5= 1,13 ± 0,06 mmol L-1. A estimulação da atividade da enzima por K+ (V= 39,9 ± 1,9 U mg-1 e K0,5= 4,2 ± 0,2 mmol L-1), Mg2+ (V= 45,0 ± 2,2 U mg-1, K0,5= 0,82 ± 0,04 mmol L-1) e NH4+ (V= 31,7 ± 1,6 U mg-1, K0,5= 19,0 ± 0,9 mmol L-1) também ocorreu por meio de interações sítio-sítio. A afinidade aparente da enzima pelo PNFF e Mg2+ foi similar às relatadas para enzimas de outros crustáceos, incluindo caranguejos habitantes de meios mais salinos. Entretanto, a enzima de D. pagei apresentou menor afinidade aparente por íons K+ que as outras espécies já estudadas. A atividade K+-fosfatase da (Na,K)-ATPase branquial de D. pagei mantido em água doce foi estimulada sinergicamente por K+ e NH4+ sugerindo a presença de dois sítios de ligação para estes íons na molécula da enzima. Ouabaína (4 mmol L-1) inibiu a atividade PNFFase total da preparação (≈ 89%), por meio de uma curva monofásica (KI= 225,6, ± 11,3 µ mol L-1), sugerindo que, se presentes na fração microsomal, as duas isoenzimas da (Na,K)-ATPase apresentam sensibilidades próximas para o inibidor. Ortovanadato (1µmol L-1) inibiu 95% da atividade PNFFase total por meio de uma curva bifásica, reforçando a sugestão da presença de duas isoenzimas na preparação. A hidrólise do ATP pela (Na,K)-ATPase branquial de D. pagei mantido em água doce ocorreu em sítios de alta (V= 6,4 ± 0,32 U mg-1 e K0,5 = 0,34 ± 0,02 µmol L-1) e baixa afinidade (V= 127,1 ± 6,2 U mg-1e KM = 84 ± 4,1 µmol L-1). Não foi encontrada uma correlação direta entre a afinidade pelo ATP e o habitat de diferentes espécies de caranguejos. A atividade (Na,K)-ATPase específica de D. pagei mantido em água doce foi cerca de 3 vezes menor que relatada para Potamon edulis, única espécie de caranguejo dulcícola para a qual este parâmetro foi relatado. Atividades específicas muito maiores foram encontradas para caranguejos estuarinos, particularmente quando aclimatados a salinidades baixas. A baixa atividade específica determinada para D. pagei pode ser atribuída ao baixo gradiente osmoiônico que este animal mantém entre a hemolinfa e o meio externo, comparado a outros caranguejos dulcícolas, que o caracteriza como uma espécie particularmente bem adaptada ao ambiente dulcícola. A estimulação da atividade da enzima por íons Na+ (V = 133,8 ± 7,3 U mg-1e K0,5= 4,7 ± 0,3 mmol L-1), Mg2+ (V= 136,5 ± 8,0 U mg-1, K0,5= 0,62 ± 0,04 mmol L-1), K+ (V = 131,7± 7,9 U mg-1 e K0,5= 0,47 ± 0,03 mmol L-1) e NH4+ (V= 125,6 ± 6,3 U mg-1, K0,5= 1,90 ± 0,09 mmol L-1) ocorreu por meio de interações sítio-sítio. A afinidade aparente por Na+ da enzima de D. pagei é baixa, se comparada às relatadas para outros animais dulcícolas, e similar às encontradas para espécies estuarino/marinhas. Em contraste, a afinidade aparente por K+ é 2,5 a 5 vezes maior que as determinadas para espécies habitantes de meios mais salinos e aparentemente está mais relacionada ao habitat do animal que a afinidade por Na+. Esta possibilidade é coerente com o fato da (Na,K)-ATPase branquial dos crustáceos apresentar os sítios de ligação de K+ expostos para a hemolinfa, o que possibilita a modulação da atividade da enzima pela concentração de K+ na hemolinfa. Ao contrário do observado para várias outras espécies de caranguejos, a atividade (Na,K)-ATPase branquial de D. pagei não foi estimulada sinergisticamente por K+ e NH4+. Entretanto, a presença de um dos íons no meio reacional provoca o aumento da afinidade aparente da enzima pelo outro em cerca de 3 vezes. Fisiologicamente, esta característica cinética pode ser importante para garantir o transporte de ambos os íons pela enzima, mesmo em presença de concentrações relativamente elevadas do outro. Ouabaína (3 mmol L-1) inibiu a atividade ATPase total (≈ 78%) por meio de uma curva bifásica (KI= 6,21 ± 0,32 µmol L-1 e 101,2 ± 5,1 µmol L-1), reforçando os resultados anteriores no sentido de demonstrar a existência de duas isoenzimas da (Na,K)-ATPase nas brânquias posteriores de D. pagei. Observou-se também uma inibição bifásica por ortovanadato (10 µmol L-1), que inibiu a atividade ATPase total em 85%. O pH ótimo para a atividade V-ATPase branquial de D. pagei foi de 7,5. A modulação da atividade V-ATPase do animal mantido em água doce por ATP (V= 26,5 ± 1,3 U mg-1; K0,5= 3,9 ± 0,2 mmol L-1) e Mg2+ (V = 27,9 ± 1,4 U mg-1; K0,5 =0,80 ± 0,04 mmol L-1) ocorreu por meio de interações cooperativas. Já a inibição da atividade ATPase insensível ao ortovanadato por bafilomicina A1 ocorreu segundo uma curva monofásica (KI= 55,0 ± 2,8 nmol L-1). Cerca de 44 % da atividade ATPase total foi inibida, correspondendo à V-ATPase. A atividade V-ATPase branquial de D. pagei diminuiu acentuadamente em resposta à exposição à salinidade de 21‰. Após 1h de exposição, a atividade diminuiu cerca de 3 vezes, chegando a 4 vezes após 24h, o que indica a atuação de mecanismos eficientes de regulação a curto prazo. Curiosamente, a atividade V-ATPase foi cerca de 2 vezes maior para um tempo de aclimatação de 120h a 21‰, comparado a 24 h, embora 2 vezes menor que a estimada em água doce. Passadas 240 h, a atividade voltou aos baixos níveis observados entre 1h e 24h, o que indica a ação de mecanismos de regulação a longo prazo. Além da diminuição da atividade específica também foi observado aumento da afinidade da enzima por ATP (12 vezes) e Mg2+ (3 vezes) em resposta à exposição dos animais a 21‰. Similarmente, ocorreu um aumento de até 190 vezes na afinidade da enzima por bafilomicina A1. Propõe-se que, em resposta à alteração de salinidade, ocorrem mudanças conformacionais tanto em V1 (onde se encontram os sítios de ligação de ATP e Mg2+) quanto V0 (onde se localiza o sítio de ligação de bafilomicina), resultando numa maior exposição do sítio para o inibidor e no aumento da afinidade por Mg2+ e ATP. Como os aumentos de afinidade são observados já após 1h de exposição, este mecanismo parece ser independente da expressão protéica e, portanto, não estaria relacionado à expressão de isoformas diferentes de alguma das subunidades da enzima. A diminuição da atividade V-ATPase branquial de D. pagei em resposta à exposição a uma salinidade elevada é compatível com os mecanismos propostos para a atuação desta enzima no processo de captura ativa de Na+ em crustáceos dulcícolas. Após 10 dias de aclimatação ainda se tem atividade V-ATPase detectável nas frações microsomais das brânquias posteriores do animal, possivelmente envolvida nas funções de regulação ácido-base e excreção de amônia. Os resultados obtidos para a aclimatação de D. pagei por um período de 10 dias a salinidades entre 5 e 21‰ mostraram também uma diminuição acentuada da atividade V-ATPase em resposta ao aumento da salinidade. Entretanto, com exceção da salinidade mais baixa (5‰) não se observou aumento da afinidade da enzima por bafilomicina, sugerindo que esta alteração seja limitada a tempos de aclimatação mais curtos. Entretanto, também se verificou um aumento acentuado da afinidade da enzima por ATP e Mg2+.

ASSUNTO(S)

dilocarcinus pagei gills k)-atpase k)-atpase osmoregulation osmorregulação v-atpase v-atpase (na (na brânquias dilocarcinus pagei

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