Formação acadêmica e concepções de acidente e injúria em falantes do português : em busca de contrastes entre a língua cotidiana e línguas especializadas selecionadas

AUTOR(ES)
DATA DE PUBLICAÇÃO

2009

RESUMO

Contexto: A morbimortalidade por causas externas constitui um dos mais graves problemas de saúde pública global. Dentre as estratégias preventivas primárias, a educação para a segurança é uma das áreas em que é mais nítida a influência das concepções das pessoas sobre as atitudes e determinantes de vulnerabilidades e resiliências. Especialistas da disciplina do controle de injúrias físicas, no âmbito da língua inglesa, hegemônica, advogam pela proscrição do termo acidente, pelo menos do léxico acadêmico, mas também evitando o seu emprego na promoção da saúde, por conta de um potencial efeito negativo de suas alegadas acepções pré-científicas de imprevenibilidade nas ações educativas. Essa questão, ainda polêmica entre os pesquisadores de língua inglesa, nunca foi estudada na língua portuguesa. Seu estudo tem grande relevância para a inserção da pesquisa brasileira nas iniciativas em andamento, no âmbito mundial, para a normalização terminológica nesse campo de conhecimento. Observa-se uma tendência crescente na utilização do termo injúria, nos textos acadêmicos originais em português, com definição equivalente à dos textos em inglês, fenômeno que merece um olhar mais atento. Objetivos: Promover a inserção da discussão terminológica no campo das ciências médicas, por meio do olhar crítico sobre o impacto da passagem de falantes do português por cursos de graduação selecionados sobre suas concepções dos vocábulos acidente e injúria, principalmente quanto à associação com noções de causalidade, intencionalidade, previsibilidade e prevenibilidade. Métodos: Estudo observacional, transversal, com coleta de informações quantitativas por meio de enquete autoadministrada realizada integralmente pela internet. A amostra alvo compreendeu estudantes de primeiro e último ano de medicina, direito, comunicação e educação de todas as escolas da cidade de Porto Alegre, Brasil. Desenvolvemos um aplicativo original, capaz de recrutar respondentes, enviar convites pessoais por e-mail, armazenar as respostas e exportar os dados. O software e os dados foram hospedados em um site específico do projeto, com acesso permanente pela internet. As variáveis preditoras foram os seguintes atributos dos sujeitos: idade, sexo, estágio do curso, curso, inclinação política, espiritualidade, arrojo, hábito de ler instruções sobre produto de limpeza, fonte de orientação sobre segurança, uso do cinto de segurança, uso de assento infantil de segurança, uso de capacete de ciclista, modo de armazenar arma de fogo, experiência com perda de ente querido por causas externas, experiência de hospitalização por causas externas e conhecimento de causas de morte de crianças e de adolescentes. As variáveis de desfecho foram as seguintes concepções dos sujeitos acerca dos termos acidente, injúria e lesão: tipo de dano; associações de ideias com as três palavras; noções de fatalidade, intencionalidade, previsibilidade e prevenibilidade associadas à palavra acidente; associação de traumatismo cranioencefálico com injúria, acidente ou lesão; grau de prevenibilidade atribuído a cada uma das três palavras e culpabilidade da vítima num caso definido de acidente com criança. Para investigar a associação entre atributos e concepções submetemos os dados à análise de correspondência simples e ao teste qui-quadrado com análise de resíduos. Resultados: A taxa de resposta à enquete foi de 34,5%. Metade dos sujeitos responderam até o segundo dia, 66,3% durante a primeira semana. 4,2% dos sujeitos se recusaram a revelar sua religião e 19,2% se recusaram a revelar sua inclinação política, enquanto apenas 2,8% se recusaram a responder questões sobre concepções e atitudes. Não houve diferença significativa entre os que responderam cedo ou tarde, quanto a atributos e concepções selecionados. Estudantes de medicina se distinguiram dos demais pelas associações com a arreligiosidade, com o conhecimento de que a mortalidade de crianças e jovens se dá principalmente por causas externas e com o hábito de buscar orientação sobre segurança em fontes especializadas. Os sujeitos revelaram percepção preponderante de que os chamados acidentes são preveníveis e tal percepção não mudou se a palavra usada na pergunta foi injúria ou lesão. A palavra acidente evocou noções de prevenibilidade em 85,1% dos sujeitos, previsibilidade em 50,3%, fatalidade em 15,1%, e intencionalidade em 2,3%. Religiosidade apresentou correspondência com noções de não previsibilidade e fatalidade atribuídas à palavra acidente. Calouros associaram a palavra acidente a noções de não previsibilidade, enquanto formandos foram significativamente distintos em considerar que acidentes podem ser previstos. Os sujeitos associaram injúria com dano moral, de modo quase unânime e, em menor grau, com noções de calúnia e difamação; uma porção limitada associou injúria com dano físico e ferimento. Associaram mais a palavra lesão com dano físico, mas também revelaram concepções igualitárias de dano físico, moral e material. Estudantes de cursos e estágios diferentes variaram significativamente em suas concepções de acidente e injúria. Estudantes de medicina se colocaram em franca oposição aos de todos os demais cursos no tangente à associação de injúria com danos físicos. Estudantes de direito associaram acidente com noções de negligência, dano moral e difamação. Estudantes de educação associaram acidente com noções de não prevenibilidade e fatalidade. Conclusões: A enquete online para investigar concepções de estudantes universitários acerca de injúrias físicas é factível e produz taxas de resposta similares às da literatura. Um período de acompanhamento superior a três semanas não é recomendável; limitar os esforços de recrutamento de respondentes a esse tempo restrito permite uma concentração mais racional de recursos. A enquete online é efetiva na abordagem de questões sensíveis, como atitudes em segurança, inclinação religiosa e política. A análise geométrica de dados é eficaz em evidenciar correspondências entre um grande número de modalidades de variáveis categóricas e denota de modo apropriado as suas associações estatisticamente significativas. A análise de resíduos ajustados mais ratifica do que enfraquece a análise geométrica. O currículo médico promove a terminologização da palavra injúria. Um modelo conceptual da injúria como entidade nosológica tem que respeitar o fato da terminologização da palavra injúria no âmbito médico, assim como conceder que a significação leiga da palavra acidente é um evento antecedente não intencional e prevenível, potencialmente gerador de injúria. No âmbito da linguagem médica, há uma definição de espaços semânticos específicos para os termos lesão (com acepção de dano anatomopatológico sem causação externa) e injúria (com acepção de dano físico, com ou sem lesão). Noções populares vinculadas à palavra acidente têm mais sutilezas do que sustentam os que propugnam pelo seu banimento do léxico acadêmico.

ASSUNTO(S)

trauma educação médica ferimentos e lesões wounds and injuries lesions acidentes terminology terminologia health surveys linguagem vocabulário internet health knowledge attitude medical information systems open source software software development

Documentos Relacionados