Os fantasmas do rio : um estudo sobre a memoria das monções do Vale do Medio Tiete

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DATA DE PUBLICAÇÃO

2004

RESUMO

As monções foram expedições fluviais próprias do século XVIII, partindo do porto paulista de Araritaguaba, atual Porto Feliz, no Vale do Médio Tietê, e demandando as minas de ouro de Cuiabá, no Mato Grosso. Percorriam cerca de 3.500 quilômetros por diversos rios, superando obstáculos inúmeros, entre corredeiras, saltos, pestilências, ataques indígenas, para o fornecimento de víveres, manufaturados, transporte de homens e de ouro. Pelo conjunto de peculiaridades, técnicas específicas de marinharia e fabricação de canoas, bem como pela coleção de ocorrências trágicas, as monções se revestiram, ao longo dos tempos, de uma aura de empreitada grandiosa, quase absurda, semi-lendária. Seu desaparecimento deveu-se à abertura de caminhos terrestres por Goiás e ao advento das tropas de mulas. As últimas expedições comerciais de que se têm notícia partiram de Porto Feliz na década de 1.830. A partir daí o fenômeno e as técnicas, práticas e histórias que lhe são pertinentes parecem ter rapidamente adentrado um processo de esquecimento. Novo capítulo se acrescentou a partir do início do século XX, com a monumentalização das monções, graças à iniciativa do governo paulista e de historiadores, dentre os quais se destaca Afonso de Taunay. São dessa época o monumento às monções e a escadaria monumental erigidos à beira do Tietê, em Porto Feliz. Já nas décadas de 1940 e 1950, também com a participação de outro historiador, Sérgio Buarque de Holanda, as monções propiciariam a criação de uma festa anual, ainda existente, na qual moradores de Porto Feliz procuraram "reviver" a seu modo aquelas expedições, com trajes e adereços inspirados no século XVIII, desfiles e outras celebrações. O exame de documentos cartoriais do início do século XIX, no qual a tripulação das últimas monções aparece como depoentes em autos de devassa, dá conta de sua condição social, confirmando os vários depoimentos de autoridades coloniais e viajantes. Uma listagem e exame dos cerca de meia centena de homens encontrados na pesquisa comprova seu baixo extrato social, negros e mestiços em grande parte. Esse perfil é cruzado com algumas ocorrências criminais naquele meio, bem como com o levantamento dos valores que se pagava habitualmente por seus serviços, como remadores ou pilotos de canoas. As queixas de comerciantes e outros viajantes quanto à instabilidade ou inconstância de tal maruja também é trazida para buscar uma visão do grau de apreço de que o ofício de monçoeiro gozava. Era ofício desprestigiado, relegado às camadas mais pobres da população e cercado pelo estigma da pouca confiabilidade de seus membros. Por outro lado, o arrolamento de depoimentos de viajantes e antigos cronistas mostra que a idéia de bandeirante, de paulista, de bandeira ou monção, desde muito cedo esteve cercada pela aura de heroísmo e de façanha notável. Mostra-se que o conceito de um "paulista heróico" não foi construção acadêmica do início do século XX, como pensam alguns, mas apreciação bem mais antiga. Assim, bipartiram-se as imagens que se teve, nos séculos XVIII, XIX e mesmo no XX, acerca do fenômeno das monções. Elas foram percebidas como feitos grandiosos pelos viajantes, pelas autoridades em trânsito, pelos estrangeiros. Mas essa grandeza não foi efetivamente comunicada à marinharia rude que a serviu, tida sempre como gente de pouco valor e pouca confiabilidade. Confirma-se a impressão de Sérgio Buarque de Holanda, de que os ofícios do rio não foram realmente absorvidos pela "gente rude" de São Paulo. Assim que a necessidade de navegar se esvaiu, aquele ofício foi rapidamente esquecido, sem ter gerado costumes, tradições ou festejos significativos e duradouros. Há uma memória oficial e monumentalizada, das monções, mas não há uma memória dos monçoeiros, cuja realidade grosseira e desprestigiada, de certa forma, perdeu-se rapidamente da lembrança nacional e mesmo da regional.

ASSUNTO(S)

memoria monções

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